ROUBARÃO TUDO

A história das leis é também a história de suas transgressões. Tão antigas quanto as normas são as rupturas que lhes negam. Antes mesmo que os preceitos morais por trás da máxima do “não roubarás” fossem inscritos no Decálogo ou na Lei do Talião, o roubo já era constitutivo da experiência humana.
Um roubo apresenta os contornos de uma plena estrutura narrativa: os objetos de desejo, as personagens desejantes e os obstáculos às suas aspirações subversivas; conflito e resolução, portanto. Daí esta contravenção como figura de interesse constante das representações, muito mais do que a mera submissão às ordens.
Já em 1903, aliás, o assalto aparece como tema central de The Great Train Robbery, considerado um dos primeiros filmes narrativos de todos os tempos. A representação do roubo está inexoravelmente associada à história do cinema. Por isso, dos dias 21 de Julho a 10 de Agosto, o CINUSP apresenta a mostra “Roubarão Tudo”, palco de litígios e contravenções, em que as diferentes maneiras de se debruçar sobre o assalto serão suscitadas.
É provável que a forma mais recorrente do registro do roubo no cinema seja aquela que se consagrou sob o gênero do heist movie, segundo o qual o assalto é um processo capaz de ser dividido e que nunca excede a soma de suas partes. Cada etapa do plano é meticulosamente ensaiada e, então, todos os especialistas envolvidos — porque se trata, essencialmente, de um ofício coletivo — encenam suas respectivas tarefas na realização do roubo. Trata-se de uma lógica da performance sucessivamente planejada que é, então, consumada no ato maior da ação. Rififi, dirigido por Jules Dassin e lançado em 1955, é possivelmente o filme que inaugura esse registro: o roubo a uma joalheria é precisamente coreografado antes que ele se realize em uma cena silenciosa que dura 30 minutos, e nenhum passo é dado em vão. Profissão: Ladrão, dirigido por Michael Mann, explora as dinâmicas de confiança e traição que podem surgir no interior de uma gangue e a possibilidade da representação do roubo como ofício. O retrato estiloso e metódico da profissão é ornamentado pelo néon e pela violência. Já Onze Homens e um Segredo amplia a escala do roubo ao limite do absurdo, mas cada elemento do plano é, ainda, desempenhado de maneira precisa, de forma que a execução do roubo coincide perfeitamente com a sua premeditação milimétrica.
Em Os Eternos Desconhecidos, filme italiano de 1958, o paradigma do plano é tomado pelo caráter atrapalhado das personagens, que protagonizam um roubo espirituoso e povoado pelo sentimento de amizade. O laço da ternura fraternal é também o sentimento que governa o enredo em Thunderbolt and Lightfoot, muito embora a amizade entre o jovem contraventor de Jeff Bridges e o ladrão experiente interpretado por Clint Eastwood seja caracterizada pela parceria e pelo companheirismo, antes que por tolices e risadas. Primeiro longa-metragem da premiada produtora mineira Filmes de Plástico, No Coração do Mundo se confronta com sentimentos semelhantes na generosidade por meio da qual lida com a relação entre as personagens; a cumplicidade nasce de um objetivo comum cujas expectativas se projetam ao assalto, grande fabulador de possibilidades e de mudanças, mas desta situação se espraiam outras paixões.
A escala é um parâmetro capaz de ser modulado intensamente com a permanência do tema. Pickpocket nos faz pensar que um registro menor do filme de roubo é possível, e Shoplifters o confirma. Bresson e Koreeda parecem dizer em uníssono que o roubo guarda em si a possibilidade de ser alguma outra coisa que não ele mesmo, isto é, que ele também pode ser bom para se pensarem outros conflitos. Por isso amor e família confundem-se com as contravenções, pois, efetivamente, o ato de roubar nos diz algo a respeito dos sentimentos das personagens. O filme argentino Nove Rainhas, protagonizado por Ricardo Darín e Gastón Pauls, empreende um projeto semelhante em seu interesse pelos pequenos golpes urbanos, desta vez nas ruas de Buenos Aires. Neste caso, o roubo é pequeno porque as pretensões e as índoles das personagens também o são, mas um plano maior parece traçado para que os espólios furtivos dos dois golpistas sejam enormes.
A estrutura bipartida do assalto também encerra em si a possibilidade do erro. O momento de planejamento, que se justifica posteriormente no ato do roubo, não é capaz de prever a totalidade das circunstâncias, uma vez que, ainda na aproximação teatral, a ordem e a lei são compostas por atores cuja função é essencialmente imprevisível. Em Um Dia de Cão, o conflito se desenvolve justamente às custas da impossibilidade do cálculo desta ação não coreografada da polícia, a partir do momento que o ato do assalto é interrompido e o filme se desdobra em uma situação de reféns. Já em O Plano Perfeito, muito devedor ao primeiro, o sucesso do assalto depende da incorporação dos movimentos improvisados, de forma que o plano pareça capaz de prever o imprevisível. Em conjunto, ambos apresentam uma tensão dialética importante entre a perspectiva de quem planeja e realiza o assalto e, portanto, deseja profundamente o seu sucesso, e aquela de quem o opõe frontalmente a fim de fazê-lo ruir. Já em O Grande Golpe, parte da filmografia menos conhecida de Stanley Kubrick, o erro é introduzido pelo elemento da desatenção: os desvios que sucedem o assalto a uma corrida de cavalos causam ao plano o seu colapso e as personagens não podem senão dobrar-se ao destino brutal reservado aos transgressores.
Há, também, a possibilidade de subversão das instruções previstas, tanto no que diz respeito à realização do assalto, quanto à forma de pensá-lo e registrá-lo como objeto cinematográfico. Bando à Parte concretiza muitas das possibilidades de experimentação que Godard entrevê no filme de assalto: as referências ao cinema de gênero americano, as inversões e modulações de seus estereótipos que, no limite, chegam ao ponto da sátira, e a imagem de um final singelo. Trata-se, em suma, de uma obra que faz ver seu gênero subjacente, mas não se reduz plenamente a ele. Registro, na ordem do discurso, muito semelhante ao de Femme Fatale, em que o roubo figura como fundo sobre o qual o diretor pode fazer cantar as possibilidades da linguagem. O filme de Brian De Palma parece plenamente autoconsciente em sua radicalidade representativa: as múltiplas perspectivas e as telas divididas, marcas registradas de sua direção, operam como veículos de significação para os temas trabalhados. A curiosa fusão de elementos vindos do cinema de Hitchcock e do noir americano caracteriza uma ironia extrema da forma. A sessão do dia 05 de Agosto será acompanhada por um debate com Wellington Sari, diretor, roteirista e pesquisador da obra de De Palma.
Em termos de interpretação, Chuva de Luz na Montanha Vazia se inscreve em uma tradição muito distante do que amiúde se associa ao filme de roubo. Os arquétipos permanecem, mas são cedidos aos critérios das artes marciais chinesas. King Hu multiplica as personagens interessadas no objeto do roubo, de forma que surjam conflitos entre os diferentes assaltantes, que, por sua vez, giram em torno de um pergaminho manuscrito. O roubo se conforma aos traços de uma fábula budista ambientada no interior de um templo milenar.
Tão diferentes quanto os gestos que constituem os roubos representados, são também as formas de representação dos próprios roubos. Com estas transgressões provocantes, o CINUSP convida todos os contraventores a verem os grandes assaltos na telona. Planejem-se meticulosamente e tomem cuidado com os pertences na sala.
Boas sessões!